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Ensino remoto de leitura

agrupamento de gêneros no Instagram

Paper

Abstract

Este trabalho tem o objetivo de apresentar um relato de experiência de ensino de leitura em contexto remoto, que se baseou em atividade envolvendo interação em contexto digital com ênfase na observação de agrupamentos de gêneros (CAVALCANTE; MUNIZ-LIMA, 2022) no ecossistema Instagram. Entendendo interação como um processo de coconstrução de sentidos, que se dá entre interlocutores humanos e/ou não humanos e que sofre interferência de um conjunto de aspectos, como mídia, suporte, interatividade e sistemas semióticos (MUNIZ-LIMA, 2022), elaboramos e aplicamos uma atividade de leitura com três turmas de 3º ano do ensino médio do Instituto Federal de Santa Catarina, cujo objetivo foi o de construir postagens no feed do Instagram com base no conto “Nós matámos o cão Tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana. Este relato de experiência apresenta uma reflexão teórica sob o escopo da Linguística Textual e da Análise do Discurso Digital seguida de análises interpretativas dos textos multissemióticos produzidos pelos estudantes. Como resultado, observamos que os discentes, ao elaborarem suas produções nativas digitais, puderam refletir sobre a natureza compósita desses tecnodiscursos (PAVEAU, 2021), sobre os usos de tecnopalavras (neste caso, as hashtags) como recurso intertextual e argumentativo, sobre as possibilidades advindas do tipo de suporte (MARCUSCHI, 2003) envolvido na interação e sobre o potencial das ferramentas da mídia de ampliar os níveis de interatividade relacionados ao controle do conteúdo, à sincronicidade e ao caráter dialogal no processo de construção de sentidos na mídia Instagram. Com este trabalho, pretendemos contribuir para disseminar estratégias exitosas de ensino de leitura realizadas durante o ensino remoto em tempos de pandemia e alinhadas às orientações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017) no que diz respeito ao ensino e à aprendizagem com textos multimidiáticos e multimodais. Ainda, com este relato de experiência, esperamos ampliar as reflexões em torno da observação da interação em contexto digital e suas possibilidades tecnolinguageiras de construção de sentidos em sala de aula.

Keywords

Agrupamentos de gêneros. Contexto Digital. Ensino Remoto. Ensino de leitura.

Introdução

O ensino remoto instaurado durante o período de confinamento ocasionado pela pandemia de Covid-19 compeliu professores e professoras de Língua Portuguesa a superarem inúmeros desafios: as próprias limitações em relação ao domínio de recursos tecnológicos, as condições de estudo, em grande parte precárias (sobretudo entre estudantes de escolas públicas), dos discentes, a busca por alternativas metodológicas para o ensino em formatos síncrono e assíncrono, sem contar o cansaço mental diante de tantas obrigações e do aumento da carga de trabalho e o medo de perder amigo(a)s, familiares, colegas de trabalho e estudantes diante da epidemia do Coronavírus.

Inserido nesse cenário, este relato de experiência apresenta as etapas de uma atividade de leitura aplicada, em 2021, com três turmas de 3º ano do ensino médio integrado do Instituto Federal de Santa Catarina. Essa atividade em grupo, proposta durante as aulas de Literatura Africana, envolveu a produção de postagens, a serem publicadas no feed do Instagram @literatura.ifsc, elaboradas com base na leitura do conto “Nós matámos o cão Tinhoso”, do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana.

Este relato de experiência foi dividido em seções teóricas e práticas. Inicialmente, apresentamos o referencial teórico que respaldou a proposta apresentada aos estudantes, qual seja a Linguística Textual (MARCUSCHI, 2003; CAVALCANTE ET AL., 2019; MUNIZ-LIMA, 2022) e a Análise do Discurso Digital (PAVEAU, 2021). Da primeira proposta teórica, focalizamos na atual noção de interação e nos aspectos que configuram esse processo de construção de sentidos em contexto digital, conforme defendemos em Muniz-Lima (2022), e também na proposta de observação dos gêneros em agrupamentos (CAVALCANTE; MUNIZ-LIMA, 2021).

Em relação à segunda proposta teórica, lançamos mão de alguns pressupostos, como a defesa de uma perspectiva pós-dualista para os estudos da linguagem, e conceitos, como o de tecnodiscurso, para enfatizar a necessidade de uma visão integrada entre aspectos tecnológicos e linguageiros nos estudos do texto e da interação. Em seguida, apresentamos as etapas de execução da atividade proposta e os resultados exitosos alcançados. Nas considerações finais, refletimos sobre as dificuldades encontradas e apontamos perspectivas de ações pedagógicas possíveis e necessárias considerando o retorno das atividades presenciais.

1. Por um olhar mais amplo para o fenômeno da interação

Em Muniz-Lima (2022), reconsideramos o fenômeno da interação tendo em vista as características próprias dos processos de construção de sentido em contexto digital. Sob a perspectiva da Linguística Textual, defendemos ser necessário observar um conjunto de fatores tanto do universo tecnológico, como a mídia e o suporte, quanto aspectos linguageiros[1], como os sistemas semióticos e as características das produções textuais que são projetadas e que circulam especificamente nos contextos conectados à internet. Paveau (2021), no âmbito da Análise do Discurso, conceitua essas produções nativas como tecnodiscursos. Neste trabalho, por outro lado, assumimos a perspectiva da Linguística Textual, por isso entendemos os tecnodiscursos conforme mencionam Duarte e Muniz-Lima (2020):

Em Paveau (2017), termos, como texto, discurso e interação têm definição nebulosa. Neste artigo, consideramos que os discursos nativos digitais a que a autora se refere são, na realidade, textos nativos digitais. Texto, neste artigo, será considerado de acordo com Cavalcante et al. (2019, p. 25), como um enunciado completo, que se conclui como uma unidade de comunicação e que são reconhecíveis por sua unidade de sentido em contexto (DUARTE; MUNIZ-LIMA, 2020, p. 269).

Os textos que circulam em contexto digital apresentam uma estrutura composta por diferentes sistemas semióticos, o que nos impeliu a propor uma conceituação mais ampla, que pudesse ampliar algumas perspectivas dentro dos estudos da linguagem que costumavam levar em consideração aspectos ou da fala ou apenas da escrita. Tendo em vista esses aspectos, em Muniz-Lima (2022), propomos que a interação seja compreendida como:

(…) um processo de coconstrução de sentidos entre interlocutores humanos e/ou não humanos, sempre encenado, e que acontece de diferentes modos em função de uma combinação de aspectos. No caso das interações em contexto digital, propomos que seja considerado um conjunto de fatores tecnolinguageiros, que envolva, entre outros elementos, o tipo de mídia, o tipo de suporte, os níveis de interatividade e os sistemas semióticos (p. 82).

Em nossa tese, refletimos sobre o importante papel dos recursos da mídia como estimulador de reações às postagens realizadas. Com os recursos de que ela dispõe, os interlocutores são o tempo todo convidados/impelidos a construírem sentidos por meio de botões clicáveis, que geram reações as mais diversas, muitas vezes materializadas através de emojis, como acontece em mídias como Instagram e Facebook. 

Outro aspecto proposto em Muniz-Lima (2022) para um olhar mais amplo em direção ao fenômeno da interação em contexto digital é a interatividade. Esta é compreendida na seguinte acepção:

(…) assumimos interatividade como um aspecto tecnolinguageiro da interação que se refere aos diferentes modos de engajamento ativo entre interlocutores no processo de construção de sentidos, inclusive quando a máquina assume esse papel interlocutivo. No contexto digital on-line, como veremos, esse engajamento assume seus níveis mais altos quando o interlocutor tem controle sobre o conteúdo compartilhado, quando é estimulado a estabelecer trocas dialogais e quando essas trocas acontecem em um curto intervalo de tempo (MUNIZ-LIMA, 2022, p. 123).

Esse aspecto, conforme defendemos em nossa tese, envolve pelo menos três variáveis: o controle do conteúdo, ou seja, a possibilidade de interlocutores controlarem ou reagirem de alguma forma aos textos que circulam contexto digital, seja por meio de reações, comentários, compartilhamentos, entre outros recursos permitidos pelas mídias digitais. A segunda variável é o caráter dialogal ou a possibilidade que os interlocutores têm, em interações em contexto digital, de fornecer respostas entre si, estabelecendo, assim, trocas dialogais. Por último, consideramos a sincronicidade como terceira variável relacionada à interatividade. Esta tem relação com o tempo de resposta fornecido pelos interlocutores em uma interação, o que, em geral, demonstra maior ou menos nível de engajamento ativo, operante, isto é, numa participação realmente “intrometida” no processo de construção de sentidos.

Outro aspecto fundamental a ser considerado na observação da interação em contexto digital, ainda segundo Muniz-Lima (2022), são os sistemas semióticos envolvidos:

Essa natureza compósita dos textos que circulam em contexto digital interfere diretamente no modo como construímos sentidos na interação, permitindo que interlocutores interajam com o verbal, o visual e o sonoro numa “malha híbrida de linguagem” (SANTAELLA, 2014, p. 212), que compreende a relação entre máquina e linguagem. Nossa análise busca apresentar uma contribuição nesse sentido, sob a perspectiva da LT, buscando destacar de que modo os sistemas semióticos contribuem para o processo de construção de sentidos dos textos que circulam em contexto digital (MUNIZ-LIMA, 2022, p. 138).

Portanto, é preciso observar a interação a partir de um olhar amplo que envolva a análise dos sistemas semiótico oral, escrito, imagético, gestual e sonoro. Cada vez mais multissemióticos, os textos que circulam em contexto digital possuem características particulares que se mesclam ao modo como os gêneros são apresentados. Nas seções a seguir abordaremos o tecnodiscurso e a disposição dos gêneros em agrupamentos, enfatizando a importância dessa percepção para a compreensão do fenômeno da interação em contexto digital.

 

Footnotes

  1. ^ Utilizamos o termo “linguageiro” em consonância com o que defende Bronckart (2002). O pesquisador sugere que esse noção faz referência tanto a restrições estritamente linguísticas quanto a questões situacionais, interativas e discursivas. Neste trabalho, assim como fizemos em Muniz-Lima (2022), tomamos o termo em sua relação com todos os sistemas de comunicação escritos, orais, imagéticos, sonoros, gestuais e, ainda, em relação aos usos e gestos de linguagem.

1.1 O tecnodiscurso e a configuração dos gêneros em agrupamentos

Em Muniz-Lima (2022), defendemos que os textos que são produzidos e projetados para circularem em contexto digital possuem as características defendidas por Paveau para os discursos digitais nativos, quais sejam: natureza compósita; deslinearização, ampliação, relacionalidade, investigabilidade e imprevisibilidade.

A composição, ou natureza compósita, diz respeito ao fato de que as produções textuais digitais nativas são constituídas de matéria linguageira - composta, portanto, por todos os sistemas semióticos - e de matéria tecnológica, já que se constitui essencialmente de natureza informática. Evitando a nomenclatura técnica, explicamos aos estudantes envolvidos neste relato de experiência a importância de ter em mente essa ideia de composição relativa aos textos que são criados e que circulam em contexto digital. Esse foi, inclusive, como veremos, um dos critérios avaliados na atividade proposta.

Paveau (2021) defende um conceito de deslinearização bem próximo do que outros autores, como Xavier (2002), propuseram, mas com ênfase no fato de que esse caráter deslinear, materializado pelos links hipertextuais, constitui-se aspecto definidor desses textos ou tecnodiscursos, fazendo parte, portanto, de sua natureza enquanto produção nativa. Esse aspecto foi bastante explorado pelos estudantes, sobretudo com a exploração do caráter intertextual das hashtags, que permite lincagens com temas relacionados à postagem inicial realizada pelos discentes no Instagram.

Os tecnodiscursos permitem, devido a sua natureza, um caráter conversacional, que permite que as publicações nos ecossistemas digitais sejam conectadas a outras postagens feitas por usuários seguidores das páginas e perfis, através do espaço dos comentários. Cavalcante e Muniz-Lima (2021) sugerem que, em interações dessa natureza, os gêneros parecem funcionar em agrupamentos:

"Como todo texto se realiza em um gênero (MARCUSCHI, 2008), admitimos que, em situações de interação como as que ocorrem nas páginas de perfis do Facebook, estamos diante de um compósito de gêneros, os quais se atualizam em conjunto num mesmo suporte (p. 6)”.

Conforme propomos em Cavalcante e Muniz-Lima (2021), esse agrupamento de gêneros permite um processo de construção de sentidos muito mais complexo, na medida em que, dentre outros aspectos, permite a reunião de um número dificilmente contabilizável de interlocutores, sejam humanos e/ou máquinas, que podem construir e reconstruir referentes introduzidos na postagem inicial. As autores mencionam ainda que "admitir a existência de uma unidade maior que a do gênero, que pode até ser bastante diversa em termos de agrupamentos diferenciados, é abrir a possibilidade de inúmeras relações de um texto com outros num mesmo compósito” (p. 7).

Essa perspectiva, também admitida neste relato de experiência, embasou os fundamentos da atividade proposta para o(a)s estudantes.

Os tecnodiscursos, para Paveau (2021), estão todos inscritos numa relação, seja com outros textos/discursos seja com os enunciados coproduzidos com a máquina. Estreitamente relacionado ao anterior, esse aspecto permite trocas dialogais com altos níveis de sincronicidade e com possibilidades distintas de controle do conteúdo, seja pelas curtidas, comentários ou compartilhamentos permitidos pelos ecossistemas digitais.

Uma das características mais inovadoras propostas por Paveau (2021) tem relação com a investigabilidade. Considerar a interferência das ferramentas de busca e de redocumentação disponíveis na web nas produções digitais nativas altera nossa observação do fenômeno texto, visto que nos impõe um olhar atento para os rastros ou pegadas deixados pelos usuários no universo digital. Nenhum texto é esquecido ou passível de ser escondido em contexto digital. Os metadados dos discursos digitais nativos estão inscritos, como explica a autora, em um código, que não esquece nada.

O último aspecto mencionado por Paveau (2021) é a imprevisibilidade. Os textos produzidos em contexto digital e projetados para circularem nesse ambiente são, mesmo que não inteiramente, produzidos e formatados por programas e algoritmos que torna relativamente imprevisível o tipo de conteúdo a que teremos acesso quando estamos acessando redes, como Instagram, Facebook ou Twitter, para citar alguns exemplos.

Todos esses fatores, em nossa experiência com estudantes do 3º ano do ensino médio, foram explorados sem nomenclatura técnica, mas com um olhar acurado para o fenômeno, a partir de exemplificação vasta, apresentada e discutida, como detalharemos a seguir, em contexto remoto.

2. Aspectos metodológicos do relato de experiência

Nesta seção, apresentaremos a contextualização deste relato de experiência, mais especificamente o contexto da proposta de produção, o desenvolvimento das atividades de leitura do conto e a descrição da proposta de produção textual.

2.1 Contexto de produção

A atividade de leitura que será apresentada foi realizada, em contexto remoto, no Instituto Federal de Santa Catarina, em 2021, com três turmas de 3º ano do ensino médio integrado. Segundo o que foi estabelecido em resolução do IFSC, durante o período de pandemia sanitária devido à Covid-19, as aulas poderiam ser realizadas síncrona e/ou assincronamente, através do ambiente virtual (Sistema SIGAA) e também por meio de diferentes plataformas, como Google Meet, Google Classroom, sites, blogs, entre outros. Devido aos problemas de estrutura e de acesso nas residências de boa parte dos estudantes, a presença dos discentes nos encontros síncronos não era obrigatória.

Esta atividade de leitura foi proposta para as aulas que ministramos na disciplina de Língua Portuguesa e História da Literatura Brasileira, especificamente relacionada ao estudo do conto “Nós matámos o Cão Tinhoso”, do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana.

2.2 Atividades de leitura do conto

Com base em estratégias de leitura proposta por Solé (1998), propomos momentos de leitura antes, durante e depois do contato com o conto de Honwana. O momento anterior à leitura, consistiu em discussão sobre o que o(a)s aluno(a)s já sabiam sobre literaturas africanas e sobre os países que, nesse continente, tem o português como língua oficial. Ainda, foi proposta uma reflexão sobre aspectos histórico-culturais, como a invasão europeia ao continente africano e o reflexo disso no modo como africanos e indígenas são vistos na contemporaneidade. Antes de iniciar a leitura do conto, apresentamos aula expositivo-dialogada para que os estudantes conhecessem aspectos gerais e decisivos da vida do autor, os quais interferiram na produção da obra em análise. Nesse momento, engajamos os estudantes na reflexão inicial proposta em vídeo publicado no canal Mundos Possíveis, no Youtube. O objetivo central desse primeiro momento foi sensibilizar o(a)s aluno(a)s para a importância de se conhecer textos literários de países do continente africano.

O momento “durante” a leitura foi acompanhado de quatro audiolivros, em português europeu, disponíveis no YouTube em quatro partes: parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4, e de um Guia de Leitura elaborado por nós:

Figura 1 - Guia de Leitura.

Fonte: elaborado pela autora.

O objetivo do trabalho com essas mídias foi o de tornar atrativa a leitura do texto verbal escrito e, através da ativação de outros sentidos, como a audição, pudéssemos motivar os estudantes para o envolvimento com o conto. Sobretudo em relação ao uso de audiolivro em aulas de leitura, apresentamos reflexão que fizemos em Muniz-Lima (2013): “[…] o audiolivro, quando apresenta um áudio de qualidade, com leitura envolvente, pode fazer com que o aluno tenha mais concentração no texto que está sendo lido, compreendendo-o, dessa forma, com maior profundidade, sem preocupação em lê-lo em voz alta, para toda a turma” (p. 25).

A cada aula, discutíamos trechos da narrativa, enfatizando a complexidade dos personagens e propondo questionamentos para incentivar uma observação crítica dos estudantes em relação à narrativa de Honwana. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacional, é preciso “Recuperar, pelo estudo do texto literário, as formas instituídas de construção do imaginário coletivo, o patrimônio representativo da cultura e as classificações preservadas e divulgadas, no eixo temporal e espacial (BRASIL, 1999, p. 125)”. As ações pedagógicas propostas buscaram soluções nesse sentido, na tentativa de potencializar a interação texto-leitor e inserir o estudante como protagonista da própria aprendizagem.

A seguir, detalhamos a atividade “depois” da leitura, a qual coincide com a produção textual proposta para os estudantes.

2.3 A proposta de produção textual

O terceiro momento da aula de leitura do conto moçambicano foi a apresentação de proposta de produção textual, que consistiu na elaboração de uma postagem no feed do Instagram @literatura.ifsc com base em leitura crítica do conto “Nós matámos o Cão Tinhoso”. Seguindo a proposta de Cavalcante e Muniz-Lima (2021) e considerando, portanto, a postagem no Instagram como um agrupamento de gêneros, composto pelo texto imagético, a descrição e os comentários, propomos aos estudantes a produção do seguinte agrupamento de textos: um vídeo-minuto e uma descrição sobre este.

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular, o vídeo-minuto contribui para analisar a capacidade de “síntese e de percepção das potencialidades e formas de construir sentido das diferentes linguagens” (BNCC, 2017, p. 69). Este tipo de produção audiovisual consiste na elaboração de um vídeo de duração de 60 segundos que, utilizando uma variedade de sistemas semióticos, sintetize uma ideia. Para ilustrar esse tipo de produção audiovisual, apresentamos aos estudantes o seguinte exemplo:

Vídeo 1.

Media embedded September 8, 2022
Media embedded December 5, 2022

(PROJETO 11 AUDIOVISUAL, 2022).

Os estudantes deveriam se reunir em grupos, de até 4 membros, para a produção da postagem. Os seguintes critérios de avaliação foram apresentados e discutidos com os estudantes:

Figura 2 - Critérios avaliados na atividade

Fonte: elaborado pela autora

Como se pode observar, os critérios foram divididos em duas grandes categorias: uma relativa a aspectos mais diretamente relacionados à organização da produção textual (uso da modalidade formal da Língua Portuguesa; uso criativo dos recursos semióticos: escrita, imagem, som; adequação da produção textual à mídia Instagram (tempo de 1 minuto; descrição, com uso de hashtags) e outra relacionada a aspectos mais específicos à compreensão do conto (adequação do vídeo ao conteúdo do conto; qualidade da reflexão proposta sobre o conto).

Nessa proposta de produção textual, a compreensão do conto assumiu um peso maior, em termos de nota, do que os “aspectos relativos à produção textual” stricto sensu. Levando em consideração que o foco dessa aula era o ensino de leitura de textos literários, pensamos que seria mais coerente que a compreensão do conto assumisse uma pontuação mais alta, embora defendamos que, na realidade, esses critérios se imbricam. Por questões didáticas, achamos mais produtivo dividir a avaliação em categorias específicas, mas entendemos que a produção final precisa ser avaliada em todo o processo, incluindo o engajamento dos estudantes na atividade.

Ainda durante a explicação da proposta de produção textual, sugerimos a observação do site Herospark, com dicas de 12 aplicativos editores de vídeo gratuito, e do vídeo “Roteiro Fácil”, em que os apresentadores dão dicas sobre roteirização e filmagem,

Vídeo 2.

Media embedded September 8, 2022

(PRODUCCINE, 2022) 

Os grupos deveriam enviar um arquivo em .DOCX ou .PDF para a professora contendo: nome dos membros da equipe; título do vídeo-minuto; link para acesso ao vídeo-minuto (sugerimos Youtube, Google Drive ou WeTransfer) e a descrição que acompanharia o texto-fonte na postagem no Instagram.

3. Resultados e discussão

Os estudantes das três turmas do Ensino Médio produziram 14 postagens no total, divulgadas no perfil no Instagram @literatura.ifsc. A seguir teceremos comentários sobre algumas dessas produções textuais.

O trabalho desenvolvido pela primeira equipe, intitulado “Violência Civilizada” conseguiu atingir nota máxima em todos os quesitos avaliados. O grupo produziu material audiovisual complexo, com uso de vozes de fundo, com a presença de imagens e trechos escritos do conto, destacando, através desses recursos multissemióticos, os pontos principais da reflexão proposta. As reflexões apresentadas aos interlocutores se revelaram delicadas e profundas, mesmo com o tempo limitado de 60 segundos. O texto verbal escrito desenvolvido para a descrição da postagem lançou um olhar inovador para o conto, demonstrando a capacidade de compreensão do conto por parte dos estudantes. As hashtags selecionadas (#caotinhoso, #analisetextual, #conto, #literatura, #moçambique, #ifsc, #projetoliteratura, #contoafricano, #literaturaafricana, #educação, #reflexão, #arte, #LuísBernardoHonwana, #trabalhoemgrupo) inseriram essa produção digital nativa em diferentes ciberespaços do ecossistema Instagram, permitindo que a produção seja rastreada por perfis distintos.

A segunda equipe, por sua vez, também exploraram o uso de imagens estáticas e música de fundo na produção do vídeo-minuto, apesar de apresentarem uma certa dificuldade com o registro formal da Língua Portuguesa. A reflexão escolhida por este grupo foi a de relacionar o bullying sofrido pelo personagem principal com o tema da inclusão de pessoas com deficiência, o que trouxe à compreensão do conto um olhar original tendo em vista o destaque a uma problemática social brasileira.

Alguns grupos, como a terceira equipe, preferiram uma descrição mais objetiva, com poucas hashtags, mas com um uso produtivos dos recursos semióticos, explorando melodias dramáticas, na tentativa de sensibilizar o interlocutor para a reflexão proposta. Outros estudantes, como os da equipe quatro, também optaram por uma descrição mais objetiva, mas conseguiram se valer da síntese para gerar impacto, o que pode levar o interlocutor a uma expectativa positiva sobre o material audiovisual produtivo. Embora sintéticos na descrição, esses mesmos estudantes precisaram de 10 segundos a mais para a composição do vídeo-minuto (70 segundos no total). As vozes aceleradas na narração demonstraram que os estudantes provavelmente tinham muito a dizer sobre a leitura do conto.

Apenas um dos grupos não utilizou as hashtags e obteve nota mínima nesse critério. Um dos grupos utilizou um jogo para narrar os fatos apresentados. Foi discutido com a equipe sobre a importância do uso de legendas para situar o leitor em relação aos acontecimentos observados. A equipe cinco preferiu atuar como personagens do vídeo-minuto, o que gerou um efeito de descontração pelo tom humorístico da narrativa.

Em geral, percebeu-se a propriedade dos estudantes em utilizar aplicativos de edição de vídeo e imagens, o que nos leva a refletir sobre a importância de explorar esse conhecimento prévio dos estudantes na sala de aula, tornando-os protagonistas no processo de ensino e aprendizagem. Essa atividade revelou a necessidade de um trabalho mais efetivos com a linguagem não verbal, especificamente com os efeitos de sentido produzidos por imagens estáticos e dinâmicas. Embora os alunos tenham contato com esse tipo de produção audiovisual no seu cotidiano, o aprendizado sistemático desse tipo de linguagem permitirá aos discentes ampliar suas possibilidades de interação em diferentes contextos.

Em uma das aulas, fizemos a exibição dos vídeos-minuto para toda a turma e, em seguida, realizamos a postagem do agrupamento de gêneros no perfil @literatura.ifsc no Instagram. Os estudantes realizaram, posteriormente, comentários e curtidas, além de compartilharem suas próprias produções em seus perfis de Instagram, o que gerou engajamento tanto de membros da comunidade escolar quanto de fora dela.

Considerações finais

Este relato de experiência realizada durante o período de ensino remoto objetiva ampliar as propostas em torno do ensino de leitura com a produção textual em ecossistemas como o Instagram. Tendo em vista a perspectiva que se tem hoje de texto, como evento comunicativo multissemiótico, e da composição da interação, a qual envolve aspectos tanto linguageiros quanto tecnológicos, este trabalho pode ser encarado como uma contribuição ainda embrionária da tentativa de relacionar esses aspectos teóricos à prática de ensino de leitura.

Há ainda uma série de aspectos a serem revistos e retificados nesta atividade, como, por exemplo, a administração do perfil criado no Instagram, que poderia ter sido destinado a um dos estudantes, o que evitaria seu atual esvaziamento. Por estar sob responsabilidade da professora, o perfil acabou sendo descontinuado quando de sua saída da instituição, o que provocou considerável diminuição nos níveis de interatividade dessa produção textual. Aspectos, como o tipo de suporte utilizado, foram ainda pouco explorados nesta atividade. Devido ao curto tempo para elaboração dessa proposta de atividade e, ainda, considerando as obrigações da instituição quanto ao envio de notas, não foi possível realizar um momento de processamento com o grupo, em que pudéssemos refletir, com os estudantes, sobre o que funcionou bem e sobre o que precisaria melhorar em futuras atividades como esta.

De todo modo, acreditamos que este relato de experiência amplia os trabalhos em torno do estudo da interação e do ensino na perspectiva da Linguística Textual e da Análise do Discurso Digital, além de difundir estratégias exitosas alinhadas às orientações da BNCC sobre o trabalho com textos multimodais e multimidiáticos. Acreditamos que iniciativas como esta podem influenciar professore(a)s a se engajarem mais efetivamente no trabalho com o ensino de leitura aliado à produção textual multissemiótica em agrupamento de gêneros no Instagram e em outros ecossistemas, como Twitter, Pinterest, TikTok, entre outros já tão comuns no dia a dia dos discentes.


Referências

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